Eu Vejo Isso


A escravidão nunca foi abolida; ela apenas se metamorfoseou, esticando suas correntes para abraçar todas as cores, todas as classes, todas as almas. Não são mais grilhões de ferro, mas amarras invisíveis: dívidas, prazos, telas brilhantes e promessas de uma vida que nunca chega.

O que fere, o que corta fundo, é a erosão lenta e implacável da humanidade daqueles que, exaustos, se arrastam para empregos que odeiam. Eles não querem estar lá, mas o medo - esse capataz cruel - sussurra que o desconhecido é pior.

E assim, as pessoas se esvaziam. Tornam-se cascas: corpos movidos pelo pavor, mentes moldadas pela obediência cega. A luz some dos olhos. A voz, outrora vibrante, vira um murmúrio áspero, desbotado.

O corpo se curva, o cabelo perde o brilho, as unhas roídas denunciam a ansiedade, os sapatos gastos arrastam o peso de uma vida que não é vivida. Tudo se deteriora, tudo se rende.

Quando jovem, eu me recusava a acreditar que as pessoas se deixariam afundar nessa condição. Como um homem velho, ainda me espanto. Como podem aceitar? Por quê?

É pelo sexo que se tornou mecânico? Pela televisão que hipnotiza, vendendo sonhos de consumo em parcelas intermináveis? Pelo carro que simboliza liberdade, mas é apenas mais uma dívida?

Ou pelos filhos, que herdarão o mesmo ciclo de servidão, os mesmos olhos opacos, as mesmas vozes quebradas? Os senhores modernos nunca pagam seus escravos o suficiente para a liberdade - apenas o bastante para mantê-los vivos, voltando ao trabalho dia após dia, semana após semana, até que o tempo engula suas aspirações.

Eu vejo isso. É claro como o sol que queima os campos onde os escravos do passado suavam. Mas por que eles não veem? Por que aceitam as correntes disfarçadas de boletos, de notificações no celular, de metas corporativas que não significam nada?

Atualmente, a escravidão moderna se sofisticou ainda mais. As telas nos bolsos vibram com promessas de conexão, mas nos isolam em ilhas de ansiedade.

Algoritmos decidem o que pensamos, o que compramos, o que sonhamos. A gigantesca economia, com seus aplicativos de entrega e motoristas, vende a ilusão de autonomia, mas é apenas um novo capataz digital, contando cada segundo, cada corrida, cada avaliação de cinco estrelas.

As redes sociais nos acorrentam à validação alheia, enquanto o custo de vida sobe como uma maré, afogando os que tentam nadar contra a corrente. E os jovens? Eles crescem num mundo que lhes diz: "Corra, produza, consuma, ou serás descartado."

Os filhos repetem os passos dos pais, não porque querem, mas porque o sistema não lhes oferece outra trilha. E ainda assim, há rachaduras nesse sistema.

Há os que dizem "não", os que abandonam carreiras sufocantes, os que buscam vidas mais simples, mais humanas. São poucos, mas existem - sementes de rebelião contra a servidão disfarçada.

Talvez a pergunta não seja mais "Por que eles fazem isso?", mas "Como podemos parar?". Como devolver a cor aos olhos, a força à voz, a vida ao corpo?

Talvez a resposta esteja em reconhecer as correntes, em nomeá-las, em recusá-las. Porque, no fundo, a verdadeira liberdade não é dada - ela é tomada.

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