Ambiguidades
“Não cai uma folha de uma
árvore sem a vontade de Deus.” Então, tudo é culpa de Deus?
A frase, frequentemente
atribuída a uma visão teológica determinista, levanta uma questão profunda e
inquietante: se tudo o que acontece no mundo está sob a vontade divina, Deus
seria responsável tanto pelas bênçãos quanto pelas tragédias?
Quando alguém celebra
conquistas, como um bom casamento, um emprego estável ou a aprovação em um
concurso disputado, é comum ouvir que isso é “graças a Deus”.
A gratidão a uma força
superior parece natural nesses momentos de alegria. Mas e quando a vida toma
rumos sombrios? Se uma família é devastada pela violência, como o estupro de
uma mulher ou filha, se uma casa é destruída por uma catástrofe natural, ou se
alguém enfrenta uma sequência de fracassos e perdas, seria isso também “graças
a Deus”?
Por que, em uma visão onde
Deus é todo-poderoso, Ele seria creditado apenas pelas coisas boas? Essa
contradição aparente desafia a fé de muitos e alimenta debates milenares sobre
a natureza de Deus, o livre-arbítrio e a existência do mal.
Se atribuímos a Deus o
controle absoluto sobre todos os eventos, como explicar as injustiças e o
sofrimento? E se o mal é obra do “diabo” ou de forças opostas, por que um Deus
onipotente não intervém para deter tais ações?
Por que Ele permitiria
que o mal cause tamanha dor, como em casos de violência, guerras ou desastres
que ceifam vidas inocentes?
O Problema do Mal e a Teodiceia
Essa questão é central na
teodiceia, o ramo da teologia e filosofia que busca justificar a bondade de
Deus diante do mal no mundo. Filósofos como Epicuro já questionavam: “Se Deus
quer evitar o mal e não pode, Ele não é onipotente; se pode e não quer, não é
benevolente; se pode e quer, por que existe o mal?”
A resposta a essa
pergunta varia conforme as tradições religiosas e filosóficas. Na tradição
cristã, uma explicação comum é o livre-arbítrio. Deus teria dado aos seres
humanos a liberdade de escolher suas ações, o que implica a possibilidade de
escolhas erradas, resultando em pecado e sofrimento.
Assim, o estupro, o
assassinato ou a corrupção seriam consequências das ações humanas, não de uma
vontade divina direta. No entanto, essa explicação não resolve tudo.
Como justificar o
sofrimento causado por eventos fora do controle humano, como terremotos,
tsunamis ou doenças incuráveis? Um furacão que destrói uma cidade inteira, como
o Katrina em 2005, que matou mais de 1.800 pessoas e desalojou milhares, seria
parte da “vontade de Deus”?
Ou seria apenas o
funcionamento impessoal das leis naturais que Ele criou? Outra perspectiva
aponta para o “mistério divino”. Algumas tradições religiosas argumentam que os
caminhos de Deus são incompreensíveis para a mente humana.
O sofrimento, mesmo que
pareça injusto, poderia fazer parte de um plano maior, cuja lógica escapa à
nossa compreensão. Essa visão, porém, pode ser insatisfatória para quem vive a
dor de uma perda irreparável, como os pais que perderam filhos no massacre de
Suzano, em 2019, no Brasil, onde dois jovens mataram oito pessoas em uma
escola. Atribuir isso a um “plano divino” pode soar cruel ou desumano.
A Culpa do Demônio?
Outra resposta comum é
atribuir o mal a uma força oposta, como o diabo. Nesse caso, Deus não seria
diretamente responsável pelas tragédias, mas sim uma entidade maligna que age
contra Sua vontade.
Isso, porém, levanta
outra questão: se Deus é onipotente, por que não impede o diabo? Se Ele permite
que o mal aja livremente, não estaria Ele, indiretamente, consentindo com o
sofrimento?
Por exemplo, durante a
pandemia de COVID-19, que matou milhões de pessoas ao redor do mundo, seria o
vírus uma criação maligna ou uma permissão divina?
A ideia de um Deus que
“permite” o mal para preservar o livre-arbítrio ou para cumprir um propósito
maior pode parecer, para alguns, uma justificativa insuficiente diante de tanto
sofrimento.
Uma Desgraça Desenfreada?
A percepção de que o
mundo é regido por uma “desgraça desenfreada”, onde ninguém tem domínio sobre
nada, reflete o sentimento de impotência diante do caos.
Essa visão ecoa em
tragédias históricas e recentes, como o Holocausto, que exterminou seis milhões
de judeus, ou os conflitos armados na Ucrânia e no Oriente Médio, que continuam
a causar milhares de mortes e deslocamentos.
Se tudo está sob a
vontade divina, por que o sofrimento parece tão aleatório e desproporcional? E
se não está, o que resta do conceito de um Deus soberano?
Alguns filósofos
existencialistas, como Jean-Paul Sartre, rejeitam a ideia de um Deus
controlador, argumentando que o ser humano é radicalmente livre e responsável
por dar sentido à própria existência, mesmo em um mundo caótico.
Outros, como o teólogo
brasileiro Leonardo Boff, sugerem que Deus não é um “manipulador” dos eventos,
mas uma presença amorosa que acompanha a humanidade em seu sofrimento, sem
necessariamente orquestrar cada detalhe.
Reflexão Final
A frase “não cai uma
folha sem a vontade de Deus” pode ser reconfortante para alguns, mas
desafiadora para outros. Ela levanta questões fundamentais sobre a natureza do
divino, a origem do mal e o papel da humanidade no mundo.
Talvez a resposta não
esteja em culpar Deus ou o diabo, mas em reconhecer que a vida é uma mistura
complexa de escolhas humanas, forças naturais e, para os que creem, uma
presença divina que não elimina o sofrimento, mas pode oferecer sentido ou
consolo em meio a ele.
Para os que questionam, a
busca por respostas pode não levar a uma solução definitiva, mas a um convite
para refletir sobre como lidamos com o sofrimento e como construímos esperança
diante do caos.
Afinal, se o mundo é um lugar onde bênçãos e tragédias coexistem, cabe a nós decidir como responder a ambos.
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