Jomo Kenyatta - A Citação e Seu Contexto Histórico


 

A frase de Jomo Kenyatta - “Quando os missionários chegaram pela primeira vez na nossa terra, eles tinham as Bíblias e nós tínhamos a terra. Cinquenta anos depois, nós tínhamos as Bíblias e eles tinham a terra” - é uma crítica contundente ao colonialismo europeu e seus mecanismos de dominação.

Atribuída a Kenyatta, líder do movimento de independência do Quênia e seu primeiro presidente (1963-1978), ela sintetiza a experiência de despojo territorial, cultural e econômico vivida pelos povos africanos durante a colonização.

Embora a citação seja frequentemente citada, sua força reside em sua capacidade de condensar a complexidade do colonialismo em uma metáfora acessível e poderosa.

O Papel dos Missionários no Colonialismo

No final do século XIX, missionários cristãos, principalmente britânicos, chegaram ao que hoje é o Quênia como parte de um movimento mais amplo de evangelização na África.

Organizações como a Church Missionary Society (CMS) e a Igreja da Escócia estabeleceram missões em regiões como o interior do Quênia, particularmente entre os Kikuyu, o maior grupo étnico do país.

Eles introduziram o cristianismo, escolas e hospitais, mas sua presença estava intrinsecamente ligada ao projeto colonial. Os missionários frequentemente atuavam como intermediários culturais, preparando o terreno para a administração colonial.

Eles promoviam valores ocidentais, como a monogamia e a educação formal, que muitas vezes entravam em conflito com as práticas tradicionais africanas.

Por exemplo, entre os Kikuyu, que tinham sistemas de governança e posse de terra comunais, a introdução de conceitos de propriedade privada pelos colonizadores, muitas vezes endossados pelos missionários, desestruturou as relações sociais e econômicas tradicionais.

Além disso, os missionários frequentemente recebiam terras para construir igrejas, escolas e fazendas missionárias, terras que, em muitos casos, eram confiscadas de comunidades locais.

A citação de Kenyatta reflete essa ironia: enquanto os missionários ofereciam a Bíblia como símbolo de salvação, suas ações frequentemente facilitavam a apropriação de terras pelos colonos e a subjugação dos povos nativos.

A Colonização Britânica e a Perda de Terras

O Quênia tornou-se uma colônia britânica formal em 1920, mas o processo de ocupação começou antes, com a chegada de colonos brancos no final do século XIX.

As terras mais férteis, particularmente nas Terras Altas Brancas (atual região central do Quênia), foram destinadas a fazendas de colonos para cultivo de café, chá e outros produtos de exportação.

Essas terras eram historicamente ocupadas por grupos como os Kikuyu e os Kamba, que foram deslocados para reservas áridas ou forçados a trabalhar como mão de obra barata nas fazendas dos colonos.

O sistema de posse de terra colonial introduziu títulos de propriedade que ignoravam os sistemas tradicionais de posse comunal. Os quenianos foram privados de suas terras ancestrais, e muitos se tornaram “squatters” (arrendatários) em suas próprias terras, trabalhando para colonos em troca de moradia precária.

Essa alienação fundiária é o cerne da crítica de Kenyatta, que viu a perda de terra como não apenas uma questão econômica, mas também uma afronta à identidade e à dignidade dos povos africanos.

A Revolta Mau Mau e a Luta pela Independência

A crescente desigualdade e a privação de terras culminaram na Revolta Mau Mau (1952-1960), um dos episódios mais significativos da luta anticolonial no Quênia.

Liderada principalmente por membros do grupo Kikuyu, a revolta foi uma resposta à opressão colonial, à perda de terras e à exclusão econômica e política.

Os combatentes Mau Mau, também conhecidos como o Exército de Libertação da Terra e da Liberdade do Quênia, buscavam recuperar terras roubadas e expulsar os colonos britânicos.

Os britânicos responderam com extrema violência, declarando estado de emergência em 1952. Milhares de quenianos foram mortos, detidos em campos de concentração ou submetidos a torturas.

Estima-se que cerca de 90 mil pessoas foram presas em campos, onde as condições eram desumanas, e mais de 1,5 milhão de Kikuyu foram deslocados. Apesar da repressão, a revolta enfraqueceu o controle britânico e acelerou as negociações para a independência, alcançada em 12 de dezembro de 1963.

Jomo Kenyatta, que foi acusado de liderar os Mau Mau (embora sua ligação direta com o grupo seja debatida), foi preso pelos britânicos entre 1952 e 1961.

Após sua libertação, ele se tornou uma figura central na transição para a independência, liderando a União Nacional Africana do Quênia (KANU) e assumindo a presidência em 1963.

Jomo Kenyatta e Seu Legado

Como presidente, Kenyatta enfrentou o desafio de reconstruir uma nação marcada por divisões coloniais. Ele promoveu a política de “Harambee” (termo suaíli que significa “trabalhar juntos”), buscando unificar etnias diversas e reconstruir a economia.

No entanto, sua administração também foi criticada por perpetuar desigualdades fundiárias. Muitas terras confiscadas pelos britânicos não foram devolvidas aos seus proprietários originais, mas redistribuídas a elites políticas, muitas delas Kikuyu, o que gerou tensões étnicas.

A citação de Kenyatta reflete sua compreensão profunda das injustiças do colonialismo, mas também sua habilidade como orador e líder em articular as experiências de seu povo.

Ele estudou antropologia na London School of Economics e publicou Facing Mount Kenya (1938), um estudo seminal sobre a cultura Kikuyu, que desafiava estereótipos coloniais e afirmava a riqueza das tradições africanas.

Legados do Colonialismo e Relevância Atual

A frase de Kenyatta continua ressoando porque destaca um padrão recorrente no colonialismo: a troca de valores culturais e espirituais (representados pela Bíblia) por recursos materiais e poder (a terra).

Esse padrão não se limitou ao Quênia, mas foi replicado em toda a África, nas Américas e em outras regiões colonizadas. A perda de terras permanece uma questão central em muitos países pós-coloniais, onde comunidades indígenas e camponesas lutam por justiça fundiária.

No Quênia contemporâneo, a questão da terra ainda é um tema sensível. A desigualdade na posse de terras, herdada do período colonial, alimenta conflitos étnicos e políticos.

Movimentos por reparações históricas, tanto no Quênia quanto em outros países africanos, buscam compensação pelos danos do colonialismo, incluindo a devolução de terras e o reconhecimento de injustiças passadas.

Em 2013, por exemplo, o governo britânico concordou em pagar indenizações a sobreviventes dos campos de detenção Mau Mau, um raro reconhecimento de atrocidades coloniais.

Além disso, a citação de Kenyatta levanta questões sobre o papel da religião no colonialismo. A imposição do cristianismo muitas vezes serviu para minar as crenças e práticas tradicionais, criando divisões culturais que persistem até hoje.

No entanto, também houve apropriação do cristianismo por parte dos quenianos, que o reinterpretaram para apoiar movimentos de resistência, como os Mau Mau, que usavam hinos e símbolos cristãos em sua luta.

Conclusão

A citação de Jomo Kenyatta é mais do que uma crítica ao colonialismo; é um chamado à reflexão sobre as dinâmicas de poder, exploração e resistência que moldaram o Quênia e outras nações colonizadas. Ela encapsula a perda de terras, a erosão cultural e a resiliência dos povos africanos diante da opressão.

A história do Quênia, marcada pela luta pela independência e pela busca por justiça, reflete os desafios mais amplos enfrentados por nações pós-coloniais em reconciliar seus passados com seus futuros.

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