Uma Investigação Sobre o Assassinato de João Paulo I


 

Uma investigação em torno do assassinato de João Paulo I. 

Na noite de 28 de setembro ou nas primeiras horas de 29 de setembro de 1978, o Papa João Paulo I, Albino Luciani, conhecido carinhosamente como o “Papa do Sorriso”, faleceu após apenas 33 dias de pontificado.

Sua morte súbita chocou o mundo, não apenas pela brevidade de seu papado, mas também pela opacidade que envolveu as circunstâncias de seu falecimento. Sem a realização de uma autópsia, o Vaticano anunciou à imprensa internacional que a causa da morte foi um “infarto do miocárdio”.

No entanto, a ausência de um laudo pericial e as inconsistências nas versões oficiais alimentaram especulações e desconfianças que persistem até hoje. O escritor e jornalista investigativo David Yallop foi contatado por fontes dentro do Vaticano, inconformadas com o silêncio oficial e a falta de transparência sobre a morte de Luciani.

Essas pessoas, movidas pela inquietação, pediram que Yallop conduzisse uma investigação independente. Durante três anos, ele mergulhou em uma pesquisa meticulosa, desvendando uma teia de corrupção que conectava figuras influentes nos círculos financeiros, políticos, clericais e até criminais, numa conspiração de alcance global.

O que ele descobriu ecoava as inquietudes do próprio Albino Luciani, que, em seus poucos dias como Papa, havia começado a confrontar as irregularidades que assolavam a Igreja Católica.

Um Papa Reformador em um Ninho de Intrigas

Albino Luciani, com seu jeito humilde, afável e profundamente ético, era um feroz adversário da corrupção. Durante seu breve pontificado, ele demonstrou uma determinação incomum para reformar a Igreja, especialmente o Banco do Vaticano, oficialmente conhecido como Instituto para as Obras de Religião (IOR).

Luciani ordenou uma investigação detalhada sobre as operações financeiras do IOR, com foco nos métodos controversos de seu presidente, o arcebispo Paul Marcinkus.

Este, conhecido como o “banqueiro de Deus”, estava envolvido em transações financeiras obscuras que, segundo as descobertas de Yallop, incluíam a lavagem de dinheiro da máfia italiana.

Além disso, João Paulo I planejava uma reestruturação radical no alto escalão do Vaticano. Na noite de sua morte, ele discutiu com o Cardeal Jean Villot, seu Secretário de Estado, uma lista de clérigos que seriam removidos de seus cargos.

O nome de Villot, coincidentemente, aparecia nessa lista. Mais alarmante ainda era a descoberta de Luciani sobre a infiltração da Maçonaria no Vaticano.

Ele possuía uma lista de clérigos, incluindo padres, bispos e até cardeais, que pertenciam à organização, uma prática estritamente proibida pela Igreja Católica, sob pena de excomunhão automática.

Um aspecto particularmente explosivo era a conexão com a Loja Maçônica Propaganda Due (P2), uma organização secreta liderada pelo misterioso Licio Gelli, apelidado de “Titereiro”.

A P2, que operava como uma espécie de “governo paralelo” na Itália, acumulava poder e riqueza por meio de redes de influência que se estendiam a figuras políticas, financeiras e até criminais.

Yallop revelou que a P2 havia penetrado no Vaticano, envolvendo clérigos em esquemas que comprometiam a integridade moral e financeira da Igreja.

A Questão do Controle de Natalidade e a Ameaça Liberal

Outro ponto de tensão no pontificado de João Paulo I era sua postura surpreendentemente progressista em relação ao controle de natalidade, uma questão altamente controversa na Igreja Católica.

Contrariando a percepção de rigidez doutrinária associada ao papado, Luciani planejava receber, em outubro de 1978, uma delegação do Congresso dos Estados Unidos, enviada pelo Departamento de Estado, para discutir políticas de controle populacional.

Essa abertura ao diálogo sinalizava uma possível revisão da posição tradicional da Igreja, o que alarmava setores conservadores dentro e fora do Vaticano.

Os Homens que Temiam Luciani

Yallop identifica seis figuras centrais que tinham motivos poderosos para querer deter as reformas de João Paulo I. Além de Paul Marcinkus e Jean Villot, o banqueiro siciliano Michele Sindona, que enfrentava acusações de fraude e tentativas de extradição pelo governo italiano, estava diretamente ligado às irregularidades financeiras do Banco do Vaticano.

Essas operações incluíam a lavagem de dinheiro da máfia, conectando Sindona a outro banqueiro, Roberto Calvi, presidente do Banco Ambrosiano, que também estava sob escrutínio.

Em Chicago, o Cardeal John Cody, líder da mais rica arquidiocese do mundo, enfrentava a iminente destituição por ordem de Luciani, devido a denúncias de má administração financeira.

Acima de todos esses homens, pairava a sombra de Licio Gelli, o mestre da P2, cuja influência manipulava não apenas a Itália, mas também setores do Vaticano.

Por fim, o mafioso Lucio Gelli (não confundir com Licio Gelli) representava os interesses do crime organizado, que se beneficiava diretamente das operações financeiras ilícitas do IOR.

As Revelações de Yallop e Sua Trajetória Investigativa

As investigações de David Yallop, detalhadas em seu livro Em Nome de Deus, expõem um emaranhado de suborno, chantagem e assassinatos ligados às atividades criminosas que Luciani tentava desmantelar.

Yallop está convencido de que o Papa João Paulo I foi assassinado, e apresenta evidências circunstanciais que sustentam essa tese: a recusa do Vaticano em realizar uma autópsia, as discrepâncias nos relatos sobre a descoberta do corpo, e o timing suspeito de sua morte, logo após ele confrontar figuras poderosas.

Yallop não era estranho a investigações polêmicas. Seu primeiro livro, To Encourage the Others (1972), levou o governo britânico a reabrir um caso de homicídio encerrado havia 20 anos, gerando debates acalorados na mídia e no Parlamento.

Sua segunda obra, The Day the Laughter Stopped (1976), reabilitou a reputação do comediante Roscoe “Fatty” Arbuckle, esclarecendo um caso de homicídio ocorrido 50 anos antes.

Em Deliver Us From Evil (1981), Yallop ajudou a identificar o Estripador de Yorkshire, contribuindo para a prisão do serial killer que aterrorizou a Inglaterra por anos. Foi com essa reputação de investigador incansável que Yallop, criado como católico romano, aceitou o desafio de investigar a morte de João Paulo I.

O Legado de uma Investigação Incômoda

A morte de João Paulo I permanece um dos maiores mistérios da história recente da Igreja Católica. A recusa do Vaticano em realizar uma autópsia, aliada às revelações de Yallop sobre corrupção e conspirações, alimentou teorias de que Luciani foi vítima de um complô para silenciar suas reformas.

A citação bíblica escolhida por Yallop para abrir seu livro, “Feliz aquele que pegar em teus filhos e der com eles nas pedras” (Salmos 137:9), reflete o tom de indignação e denúncia que permeia sua obra.

Ela sugere a necessidade de expor e destruir as estruturas corruptas, mesmo dentro de uma instituição tão venerada quanto o Vaticano.

O trabalho de Yallop não apenas lança luz sobre os eventos de 1978, mas também levanta questões mais amplas sobre o poder, a moralidade e a transparência na Igreja Católica.

Embora suas conclusões sejam controversas e nunca tenham sido oficialmente confirmadas, elas continuam a inspirar debates e reflexões sobre o que realmente aconteceu com o “Papa do Sorriso”.

Em última análise, Em Nome de Deus é um convite a questionar as verdades oficiais e a buscar a justiça, mesmo quando ela desafia instituições poderosas.

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