Prefácio: Nos Bastidores do Reino


 

Há pouco mais de um ano, um envelope misterioso chegou às minhas mãos. O remetente era um brasileiro desconhecido, vivendo em Nova Iorque, e o pacote viera de um lugar improvável: uma região isolada, perto das montanhas de São Francisco, na Califórnia.

Abri o envelope na varanda da minha casa, com o sol de fim de tarde aquecendo o ar, enquanto me perguntava: como ele me encontrou? Por que eu?

Estava imerso em compromissos, com uma agenda cheia e prazos apertados. Mas, ao ler a primeira linha de Nos Bastidores do Reino, o mundo ao meu redor parou.

Só saí da varanda ao anoitecer, quando a última página já havia sido devorada. A sensação que ficou foi clara e imediata: ainda bem que ele me achou. Ainda bem que ele me escolheu.

Prepare-se: ler Nos Bastidores do Reino é um evento transformador. Ninguém sai ileso após mergulhar nos detalhes da vida de Mário Justino, um ex-pastor da Igreja Universal do Reino de Deus. É um livro que abala, provoca e, ao mesmo tempo, ilumina. Vale a pena correr o risco.

Ainda não inventaram um rótulo preciso para o estilo literário deste livro. Seria literatura emocional? Visceral? Confessional? Talvez pouco importe o gênero.

Nos Bastidores do Reino é, acima de tudo, o que todo grande livro aspira ser: um acontecimento na vida do leitor. Um soco no estômago, uma janela para verdades incômodas, um convite à reflexão sobre fé, poder e humanidade.

A narrativa começa desvendando a trajetória de Mário Justino, um jovem que se torna pastor da Igreja Universal do Reino de Deus, uma instituição que, na década de 1990, já se consolidava como uma potência religiosa no Brasil e além.

A história de Mário é, em parte, a história de uma crise espiritual que reflete as angústias do homem moderno. A Universal, com sua promessa de respostas diretas e soluções práticas para a carência moral e existencial de milhares de fiéis, preenchia um vazio deixado por outras religiões e seitas. Mas a que custo?

O livro expõe, com uma honestidade crua, os métodos questionáveis da igreja. Seria a fé genuína ou uma fachada para a exploração financeira? A narrativa sugere que a religião, em muitos casos, se transformou em um negócio altamente lucrativo.

Pastores são premiados não por sua piedade ou dedicação espiritual, mas por sua capacidade de arrecadar milhões. Nos bastidores, a competição é feroz: fofocas giram em torno do sucesso ou fracasso financeiro de cada filial, enquanto a espiritualidade parece relegada a segundo plano.

O poder, como costuma acontecer, sobe à cabeça. O estilo de vida dos líderes da igreja, longe dos olhos dos fiéis, muitas vezes contradiz os valores que pregam.

Festas regadas a excessos, comportamentos nada cristãos e uma busca desenfreada por status e riqueza tornam-se a norma. É nesse ambiente que Mário Justino, nosso protagonista, se vê tragado por uma espiral de corrupção moral e espiritual.

A tragédia pessoal de Mário é o coração pulsante do livro. Contaminado pelo vírus da AIDS, ele é expulso da igreja que outrora o acolheu. Sem apoio, sem recursos e sem rumo, ele desce aos poucos os degraus de um inferno particular.

O ex-pastor, que já foi uma figura de autoridade, acaba nas sombras de uma estação de metrô em Nova Iorque, aquecendo-se ao lado de outros marginalizados, em meio a fogueiras improvisadas.

Ali, entre os “possuídos” pela miséria, ele planeja vinganças impossíveis - incluindo o assassinato de Edir Macedo, o líder da Universal, que Mário culpa por sua ruína.

Mas Nos Bastidores do Reino não é apenas uma denúncia explosiva contra a Igreja Universal. É também uma reflexão profunda sobre a própria teologia cristã.

Ao acompanhar o calvário de Mário, somos confrontados com a pobreza e a verdade do ideal cristão - um ideal que parece mais vivo na dor de um homem quebrado do que na opulência das catedrais ou nas contas bancárias de instituições religiosas.

Mário, com suas cicatrizes e sua humanidade exposta, acaba se revelando mais próximo do espírito de Jesus do que toda a pompa papal ou os impérios construídos em nome da fé.

O livro também joga luz sobre um fenômeno social que marcou o Brasil dos anos 1990: o crescimento vertiginoso de igrejas neopentecostais, como a Universal, em um país marcado por desigualdades profundas.

A promessa de prosperidade e salvação atraía milhões de pessoas simples, muitas vezes desamparadas, que depositavam suas esperanças - e o pouco que tinham - nas mãos de líderes carismáticos.

Nos Bastidores do Reino revela o outro lado dessa promessa: a manipulação da fé, a distorção de textos bíblicos e a criação de um sistema que, segundo Mário, transforma fiéis em “vítimas” de uma máquina bem azeitada.

Mário Justino, com sua coragem de expor essas verdades, emerge como um herói improvável. Sua história é a de alguém que viu o melhor e o pior da condição humana, que viveu os extremos do poder e da miséria, da fé e da descrença.

Suas palavras, duras e poéticas, têm o poder de nos salvar - ou, pelo menos, de iluminar caminhos que preferimos evitar. Este não é um livro para os confortáveis.

É para aqueles que estão dispostos a enfrentar verdades incômodas, a questionar instituições intocáveis e a enxergar a humanidade por trás das manchetes.

Faça bom proveito das palavras de um homem que viveu tudo isso. E que, ao compartilhar sua história, nos convida a refletir sobre o que realmente significa acreditar, sofrer e, quem sabe, redimir-se.

Por Marcelo Rubens Paiva, São Paulo, primavera de 1995

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