O estranho ser humano


 

O ser humano é, por vezes, um enigma até para si mesmo. Em suas contradições, revela uma relação estranha com a vida e a morte. Briga com os vivos, fere com palavras e atitudes, mas carrega flores para os mortos, em um gesto tardio de reverência.

Abandona os vivos à própria sorte, deixa-os à margem, na sarjeta da indiferença, enquanto deseja um "bom lugar" para aqueles que já partiram.

Afasta-se dos vivos, ignora laços, constrói muros de silêncio, mas, quando a morte os leva, agarra-se desesperadamente à memória, como se pudesse resgatar o tempo perdido.

Passa anos sem trocar uma palavra com alguém, sem um gesto de carinho ou reconciliação, mas, quando esse alguém se vai, multiplica-se em homenagens, discursos emocionados e pedidos de perdão que nunca chegarão aos ouvidos do ausente.

Não encontra tempo para visitar os vivos, para ouvir suas histórias, para compartilhar um momento de afeto, mas reserva o dia inteiro para comparecer ao velório, onde o silêncio já não permite diálogos.

Crítica, julga, ofende os vivos sem hesitar, mas, quando a morte os toca, eleva-os à santidade, como se a perda apagasse todos os defeitos e tornasse o outro digno de admiração.

Não liga, não abraça, não demonstra cuidado com os vivos, mas, quando estes se vão, o remorso surge, e o ser humano se autoflagela, lamentando as chances desperdiçadas.

É como se, aos olhos cegos do homem, o valor de uma pessoa só se revelasse na sua ausência, na sua morte, e não na beleza singular de sua existência. Essa inversão de prioridades é um convite à reflexão.

Por que esperamos a morte para reconhecer o que realmente importa? Por que guardamos tanto afeto, tantas palavras gentis, tantos gestos de amor para um momento em que já não podem ser recebidos?

A vida é frágil, um sopro que pode se dissipar a qualquer instante, e ainda assim escolhemos adiá-la, como se o amanhã fosse garantido.

É tempo de repensar nossas escolhas, enquanto ainda há tempo. Que tal oferecer flores aos vivos? Um elogio sincero, um abraço apertado, uma conversa que reconcilie.

Que tal visitar quem ainda respira, ouvir suas alegrias e dores, estar presente de verdade? Que tal perdoar, pedir perdão, construir pontes antes que a morte as torne impossíveis?

O valor de um ser humano não está em sua morte, mas em sua vida – nas risadas compartilhadas, nas lágrimas enxugadas, nos momentos que, por menores que sejam, tornam a existência mais leve.

Honrar os vivos é um ato de coragem, pois exige vulnerabilidade, presença e a disposição de amar sem garantias. Que possamos aprender a celebrar a vida enquanto ela pulsa, antes que o silêncio da morte nos ensine, da maneira mais dura, o que realmente importa.

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