O perfeito não pode produzir o imperfeito - Estou plenamente convencido de que se eu fizer a um religioso a pergunta: “Pode o imperfeito produzir o perfeito?”, ele responderia sem vacilar: - Não, o imperfeito não pode produzir o perfeito!
Pelas mesmas razões, e com
a mesma força de exatidão, eu posso afirmar - O perfeito não pode produzir o
imperfeito!
Mais: entre o perfeito e o
imperfeito não há somente uma diferença de grau, de quantidade, mas uma
diferença de qualidade, de natureza, uma oposição essencial, fundamental,
irredutível, absoluta.
E mais ainda: entre o
perfeito e o imperfeito não há somente um fosso, mais ou menos largo e
profundo, mas um abismo tão vasto e tão estonteante, que ninguém o pode
franquear ou entulhar.
O perfeito é o absoluto, o
imperfeito o relativo. Em presença do perfeito que é tudo, o relativo, o
contingente não é nada; em presença do perfeito, o relativo não tem valor, não
existe.
E nem o talento de um
matemático e nem o gênio de um filósofo serão capazes de estabelecer uma
relação entre o relativo e o absoluto: a fortiori sustentamos a
impossibilidade de evidenciar, neste caso, a rigorosa concomitância que deve
necessariamente unir a Causa ao Efeito.
É, portanto, impossível que
o perfeito haja determinado o imperfeito.
Além disso, há uma relação
direta, fatal e até matemática entre uma obra e seu autor: tanto vale a obra
quanto vale o autor, tanto vale o autor quanto vale a obra. E pela obra que se
conhece o autor, como é pelo fruto que se conhece a árvore.
Se eu examino um texto mal
redigido, em que se abundam os erros de ortografa e as frases são mal
construídas, o estilo é pobre e frouxo, as ideias raras e banais, e
os conhecimentos inexatos, eu sou incapaz de atribuir este péssimo escrito a um
burilador de frases, a um dos mestres da literatura.
Se observo um desenho malfeito,
em que as linhas estão mal traçadas, violadas as regras da perspectiva e da
proporção, jamais me acudirá o pensamento de atribuir este esboço rudimentar a
um professor, a um grande mestre, a um grande artista.
Bem à menor hesitação
direi: isto é obra de um aprendiz, de uma criança, certo de que pela obra se
conhece o artista.
Ora, a natureza é bela, o
Universo é grandioso. E eu admiro apaixonadamente - tanto o que mais admiro -
os esplendores e as magnificências que nos oferecem estes espetáculos incessantes.
Mas, por muito entusiasmado
que eu seja das belezas naturais, e por grande que seja a homenagem que eu lhes
tribute, não me atrevo o afirmar que o Universo é uma obra sem defeitos,
irrepreensível, perfeita. E não acredito que haja alguém que me desminta.
Sim, o Universo é uma obra
imperfeita.
Consequentemente, digo: há
sempre, entre uma obra e seu autor, uma relação rigorosa, íntima, matemática.
Ora, se o Universo é uma obra imperfeita, o autor desta obra não pode ser senão
imperfeito.
Esse silogismo leva-me a
admitir a imperfeição de Deus, e por consequência a negá-lo.
Mas eu posso ainda
raciocinar assim: ou não é Deus o autor do Universo (exprimo desta forma a
minha convicção), ou o é, na suposição dos religiosos. Neste caso, sendo o
universo uma obra imperfeita, vosso Deus, ó crente, é também imperfeito.
Silogismo ou dilema, a
conclusão do raciocínio é esta: o perfeito não pode determinar o imperfeito.
Sebastien Faure
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