Falhas Sistêmicas
Quando
penso em tragédias como o incêndio na Boate Kiss, em Santa Maria, em 2013, que
tirou a vida de 242 pessoas, lembro-me das reações que surgiram na época.
Muitos evangélicos e pessoas ligadas a igrejas atribuíram o ocorrido a uma
força sobrenatural maligna, como se o "demônio" fosse o responsável
por tamanha desgraça.
Esse
tipo de explicação parece ser a primeira que vem à mente em situações de choque
coletivo, especialmente quando a tragédia envolve jovens ou ambientes
associados ao que alguns julgam como "pecaminoso".
No
entanto, quando outras tragédias acontecem, a lógica parece mudar. Imagine um
ônibus de romeiros que capota e pega fogo, matando quase todos os passageiros.
Os poucos que sobrevivem frequentemente atribuem sua salvação a um milagre
divino, como se Deus tivesse intervindo exclusivamente para eles.
Mas
quando uma igreja desaba durante um culto, soterrando fiéis, raramente se ouve
alguém culpar o "demônio". Nessas horas, a explicação costuma ser que
"foi a vontade de Deus" ou que "os caminhos do Senhor são
misteriosos".
Por que
a interpretação varia tanto dependendo do contexto? Por que o mesmo Deus que
"salva" uns é o mesmo que "permite" a morte de outros?
Essa
inconsistência revela uma tendência preocupante: a falta de reflexão crítica
diante de eventos complexos. Em vez de analisar as causas concretas - como
negligência, falhas estruturais ou condições de segurança precárias -, algumas
pessoas preferem recorrer a narrativas sobrenaturais que simplificam a
realidade.
É mais
fácil culpar forças invisíveis ou aceitar a tragédia como um "plano
divino" do que enfrentar a responsabilidade humana por trás desses
eventos. No caso da Boate Kiss, por exemplo, investigações apontaram
superlotação, falta de saídas de emergência adequadas e uso de materiais
inflamáveis como fatores decisivos.
Nada
disso tem relação com entidades sobrenaturais, mas sim com decisões e omissões
bem terrenas. Essa mentalidade também aparece em outras esferas. Madre Teresa
de Calcutá, frequentemente celebrada por sua dedicação aos pobres, defendia a
ideia de que o sofrimento na Terra aproximava as pessoas do paraíso.
Essa
visão, embora possa trazer consolo para alguns, acaba romantizando a dor e, em
certos casos, justificando a inação diante de injustiças. Se o sofrimento é um
"passaporte para o céu", por que lutar para melhorar as condições de
vida aqui e agora?
Essa
lógica pode levar a uma aceitação passiva de problemas que poderiam ser
evitados ou resolvidos com esforço coletivo. Não se trata de negar a fé ou
desrespeitar as crenças de ninguém.
A
espiritualidade pode oferecer conforto e esperança, especialmente em momentos
de luto. Mas quando a fé substitui o pensamento crítico, corremos o risco de
ignorar lições importantes.
Tragédias
como a de Santa Maria ou tantas outras não são castigos divinos nem obra de
forças malignas - são consequências de escolhas humanas, falhas sistêmicas e,
às vezes, puro acaso. Usar o cérebro para entender essas causas, em vez de
apenas "lavar e polir" ideias preconcebidas, é o primeiro passo para
prevenir que histórias assim se repitam.
Talvez
o maior desafio seja equilibrar a fé com a razão. Em vez de buscar respostas
prontas em dogmas, podemos aprender com a ciência, a história e a experiência
para construir um mundo mais seguro e justo.
Afinal, se há algo que une todos nós, independentemente de crenças, é o desejo de viver em um lugar onde tragédias evitáveis sejam cada vez mais raras.
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