Mitos e Religiões
"Viver
o mito" implica em uma experiência religiosa. Contudo, é preciso
esclarecer que, no contexto específico dos gregos, o mito não se confunde com a
religião, apesar de haver uma proximidade e interação frequentes.
A
religião sugere a existência de um conjunto de doutrinas, regras, crenças e
práticas autorizadas ou impostas, e aceitas de maneira quase uniforme por um
grupo.
Isso
pode incluir revelações de um Ente Superior, codificadas em um Livro Sagrado,
que orienta a conduta humana diante de um Poder extraterreno e sobre-humano.
Assim,
a religião cria um laço individual e social com o Poder percebido como
transcendente. Em contrapartida, o mito grego não estabelece uma conexão do
homem com a divindade que implique uma relação doutrinária e normativa
obrigatória.
O grego
pode questionar os deuses que criou sem se sentir em estado de pecado ou
cometer sacrilégio. O conceito de pecado é alheio à sensibilidade grega.
Um ato
contra a divindade não é muito diferente de uma ofensa contra outro ser humano.
Os deuses não são os autores da moralidade, portanto, não têm o direito de exigi-la.
Um ato
de sacrilégio cometido por um homem contra um deus, como a subtração de um
objeto de culto, não difere na essência de um roubo cometido na casa de outra
pessoa.
É uma
ofensa à justiça, que regula os deveres para com os outros, praticar uma ação
imoral, embora não constitua desobediência a um mandamento divino.
Diante
disso, o grego não sente contradição ou tormento interior que o leve a invocar
um deus para pedir perdão pelos pecados. O homem grego conhece o arrependimento
e o desejo de se corrigir para melhorar sua natureza. O mito não vai além
disso.
'Viver
o mito' significa, portanto, essa experiência: conhecer-se a si mesmo, conforme
inscrito no frontispício do templo de Apolo em Delfos. Essa experiência deve
ser compreendida mais como naturalista do que religiosa.
O homem
segue sua natureza e nela encontra a força para moldar sua vida. Ele é
responsável pelo uso dessa força perante si mesmo, e não perante a divindade, a
qual nossos critérios morais não se aplicam.
Lembre-se
que é a vida, com toda sua variedade e multiplicidade, que se manifesta no
mundo dos deuses helenos. Quando o filósofo Tales (640? - 547? a.C.) disse que
"tudo está cheio de deuses", ele quis dizer a força maravilhosa da
natureza, que molda tudo com um propósito. Em última análise, o daimon.
Na
Grécia, o princípio "demônico" (distinto de "demoníaco",
pois não se relaciona com o Demônio cristão) é capturado primeiro pelo mito,
não pela religião. Este é o fundamento do qual a religião grega se desenvolve.
Por
essa razão, na Hélade, não existiu um Livro Sagrado revelado, como ocorreu
entre judeus, egípcios, hindus e assírios. Os deuses gregos não têm revelações
a fazer aos homens, pois "o gênero dos homens é igual ao dos deuses".
Embora
o mito expresse desejos religiosos profundos, aspirações morais e a busca por
aperfeiçoamento espiritual, ele não estabelece um conjunto fixo de leis, nem
promete recompensas para os bons ou punições para os maus de maneira normativa
e constante.
Também
não há promessas de salvação eterna nem ameaças de condenação eterna. Então, o
que constitui o mundo divino dos helenos? - indaga o helenista Max Pohlenz. E
ele mesmo responde:
"É
o mundo em seu conteúdo mais essencial, a soma de todas as forças que atuam
nele; é a vida observada através de uma variedade de figuras excelsas e
imortais".
A
partir deste conceito abstrato, a religião grega estabelece as normas de
conduta moral para o homem, atribuindo aos deuses formas humanas, mas sem
desconectá-los da ordem natural e dos aspectos comuns da vida.
Apolo
não é somente o deus da luz ("Foibos"), da beleza harmoniosa e da
profecia, mas também o "Boedrômios" (o socorredor), o
"Aguiés" (patrono das ruas e estradas), o "Delfino"
(propício à navegação e ao comércio marítimo), o "Nómio" (protetor
dos pastores) e o "Smínteo" (exterminador de ratos), além do "Thargélios"
(que faz os frutos amadurecerem).
A
religião grega não experimenta a mística das religiões orientais ou o
messianismo judaico. Ela se mantém atrelada ao mundo natural e às relações
entre o cotidiano e o transcendente.
Hoje,
escavações arqueológicas e estudos filológicos aprofundados revelam que a
maioria dos deuses superiores da mitologia grega não são nativos, mas sim
importados de outros povos.
No
entanto, esses deuses ganharam características específicas e originais através
da inteligência especulativa grega, tornando-os distintivamente helenos.
Quando
os romanos se aproximaram intimamente da civilização grega (século III a.C.),
adotaram o espírito da religião helênica e grecizaram seus deuses, de modo que
se tornou difícil distinguir os protetores da Urbs dos habitantes do Olimpo.
Desde
suas origens, os romanos, antes dos latinos, rútulos, umbros, sabinos,
etruscos, entre outros, não tinham uma mitologia própria; a maioria de seus
mitos era, de fato, apropriações dos helenos, com histórias que se passavam em
território grego.
No
entanto, é possível observar adaptações nos deuses gregos para refletir o
caráter e a personalidade romana. Três deidades olímpicas são notáveis nesta
transformação latina: Ares, Atena e Poseidon.
Como
povos guerreiros, militaristas e expansionistas, os antepassados dos romanos e
Roma em si veneravam Marte (o Ares grego), o deus da guerra, frequentemente
mais do que Júpiter (Zeus), o deus supremo. Ares, no Olimpo, era um deus
malquisto; em Roma, Marte se tornou um dos principais deuses do panteão.
Apesar
de serem expansionistas, os romanos tinham preferência pela conquista terrestre
em detrimento da marítima. Assim, Netuno (Poseidon) não tinha tanta relevância
entre os romanos, em contraste com o poderoso e tempestuoso irmão do Senhor do
Olimpo.
O mesmo
raciocínio aplica-se a Minerva (Atena); embora fosse amplamente venerada por
uma civilização de pensadores, sábios e filósofos, Minerva tinha pouca
importância nos cultos romanos.
É
triste o destino que os romanos, esses ladrões culturais, reservaram para
outras divindades/personalidades da mitologia grega; os sátiros gregos,
espíritos da natureza e protetores das árvores, rios e ninfas, foram
transformados em Faunos, representações da miséria, fome e eternos mendigos, e
Eros, a Divindade Primordial e deus do Amor, foi reduzido à figura da criança
irritante e travessa do Cupido, entre outros exemplos.
Em
Roma, Júpiter é identificado com Zeus, Vênus com Afrodite, Marte com Ares,
Netuno com Poseidon, Ceres com Deméter, Juno com Hera, Vulcano com Hefestos,
Mercúrio com Hermes, Saturno com Cronos, Vesta com Héstia, Plutão com Hades,
Prosérpina com Perséfone, Hércules com Héracles, Diana com Ártemis, Baco com
Dioniso, Aurora com Eos, Luna com Selene, Odisseu com Ulisses, Noite com Nix,
Cibele com Réia, as Fúrias com as Erínias, as Parcas com as Moiras, Asclépio
com Esculápio, Leto com Latona, e assim por diante.
Poucos foram os aspectos latinos que permaneceram: a estrutura do mito e a concepção religiosa que os romanos adotaram da Grécia pareciam corresponder melhor ao seu senso prático da vida e das coisas, levando-os a identificar uma divindade grega correspondente, mesmo que a origem, simbologia e mitologia sejam completamente idênticas.
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