O diálogo aconteceu entre
uma jornalista e um taxista. Ela entrou no táxi do ponto do Shopping Villa
Lobos, em São Paulo, por volta das 19h30. Como estava escuro demais para ler o
jornal, como ela sempre faz, puxou conversa com o motorista de táxi, como ela
nunca faz.
Falaram do trânsito
(inevitável em São Paulo) que, naquela sexta-feira chuvosa e às vésperas de um
feriadão, contra todos os prognósticos, estava bom.
Depois, outro taxista
emparelhou o carro na Pedroso de Moraes para pedir um “Bom Ar” emprestado ao
colega, porque tinha carregado um passageiro “com cheiro de jaula”.
Continuaram, e ela comentou
que trabalharia no feriado. Ele perguntou o que ela fazia. “Sou jornalista”,
ela disse. E ele: “Eu quero muito melhorar o meu português. Estudei, mas
escrevo tudo errado”.
Ele era jovem, menos de 30
anos. “O melhor jeito de melhorar o português é lendo”, ela sugeriu. “Eu estou
lendo mais agora, já li quatro livros neste ano. Para quem não lia nada...”,
ele contou. “O importante é ler o que você gosta”, ela estimulou. “O que eu
quero agora é ler a Bíblia”.
Foi neste ponto que o
diálogo conquistou o direito a seguir com travessões.
- Você é evangélico?
– ela perguntou.
- Sou! – ele
respondeu, animado.
- De que igreja?
- Tenho ido na
Novidade de Vida. Mas já fui na Bola de Neve.
- Da Novidade de Vida eu
nunca tinha ouvido falar, mas já li matérias sobre a Bola de Neve. É bacana a
Novidade de Vida?
- Tou gostando muito. A
Bola de Neve também é bem legal. De vez em quando eu vou lá.
- Legal.
- De que religião você é?
- Eu não tenho religião.
Sou ateia.
- Deus me livre! Vai lá na
Bola de Neve.
- Não, eu não sou
religiosa. Sou ateia.
- Deus me livre!
- Engraçado isso. Eu
respeito a sua escolha, mas você não respeita a minha.
- (riso nervoso).
- Eu sou uma pessoa
decente, honesta, trato as pessoas com respeito, trabalho duro e tento fazer a
minha parte para o mundo ser um lugar melhor. Por que eu seria pior por não ter
uma fé?
- Por que as boas ações não
salvam.
- Não?
- Só Jesus salva. Se você
não aceitar Jesus, não será salva.
- Mas eu não quero ser
salva.
- Deus me livre!
- Eu não acredito em
salvação. Acredito em viver cada dia da melhor forma possível.
- Acho que você é espírita.
- Não, já disse a você. Sou
ateia.
- É que Jesus não te pegou
ainda. Mas ele vai pegar.
- Olha, sinceramente, acho
difícil que Jesus vá me pegar. Mas sabe o que eu acho curioso? Que eu não
queira tirar a sua fé, mas você queira tirar a minha não fé. Eu não acho que
você seja pior do que eu por ser evangélico, mas você parece achar que é melhor
do que eu porque é evangélico. Não era Jesus que pregava a tolerância?
- É, talvez seja melhor a
gente mudar de assunto...
O taxista estava confuso. A
passageira era ateia, mas parecia do bem. Era tranquila, doce e divertida. Mas
ele fora doutrinado para acreditar que um ateu é uma espécie de Satanás.
Como resolver esse impasse?
(Talvez ele tenha lembrado, naquele momento, que o pastor avisara que o diabo
assumia formas muito sedutoras para roubar a alma dos crentes.
Mas, como não dá para ler
pensamentos, só é possível afirmar que o taxista parecia viver um embate
interno: ele não conseguia se convencer de que a mulher que agora falava sobre
o cartão do banco que tinha perdido era a personificação do mal.)
Chegaram ao destino depois
de mais algumas conversas corriqueiras. Ao se despedir, ela agradeceu a corrida
e desejou a ele um bom fim de semana e um boa noite. Ele retribuiu. E então,
não conseguiu conter-se:
- Veja se aparece lá na
igreja! – gritou, quando ela abria a porta.
- Veja se vira ateu! – ela
retribuiu, bem humorada, antes de fechá-la.
Ainda deu tempo de ouvir
uma risada nervosa.
A parábola do taxista me
faz pensar em como a vida dos ateus poderá ser dura num Brasil cada vez mais
evangélico – ou cada vez mais neopentecostal, já que é esta a característica
das igrejas evangélicas que mais crescem.
O catolicismo – no mundo
contemporâneo, bem sublinhado – mantém uma relação de tolerância com o ateísmo.
Por várias razões. Entre elas, a de que é possível ser católico – e não
praticante.
O fato de você não
frequentar a igreja nem pagar o dízimo não chama maior atenção no Brasil
católico nem condena ninguém ao inferno.
Outra razão importante é
que o catolicismo está disseminado na cultura, entrelaçado a uma forma de ver o
mundo que influencia inclusive os ateus.
Ser ateu num país de
maioria católica nunca ameaçou a convivência entre os vizinhos. Ou entre
taxistas e passageiros.
Já com os evangélicos
neopentecostais, caso das inúmeras igrejas que se multiplicam com nomes cada
vez mais imaginativos pelas esquinas das grandes e das pequenas cidades, pelos
sertões e pela floresta amazônica, o caso é diferente.
E não faço aqui nenhum
juízo de valor sobre a fé católica ou a dos neopentecostais. Cada um tem o
direito de professar a fé que quiser – assim como a sua não fé.
Meu interesse é tentar compreender
como essa porção cada vez mais numerosa do país está mudando o modo de ver o
mundo e o modo de se relacionar com a cultura. Está mudando a forma de ser
brasileiro.
Por que os ateus são uma
ameaça às novas denominações evangélicas? Porque as neopentecostais – e não
falo aqui nenhuma novidade – são constituídas no modo capitalista. Regidas,
portanto, pelas leis de mercado.
Por isso, nessas novas
igrejas, não há como ser um evangélico não praticante. É possível, como o
taxista exemplifica muito bem, pular de uma para outra, como um consumidor
diante de vitrines que tentam seduzi-lo a entrar na loja pelo brilho de suas
ofertas.
Essa dificuldade de
“fidelizar um fiel”, ao gerir a igreja como um modelo de negócio, obriga as
neopentecostais a uma disputa de mercado cada vez mais agressiva e também a
buscar fatias ainda inexploradas.
É preciso que os fiéis
estejam dentro das igrejas – e elas estão sempre de portas abertas – para
consumir um dos muitos produtos milagrosos ou para serem consumidos por doações
em dinheiro ou em espécie. O templo é um shopping da fé, com as vantagens e as
desvantagens que isso implica.
É também por essa razão que
a Igreja Católica, que em períodos de sua longa história atraiu fiéis com ossos
de santos e passes para o céu, vive hoje o dilema de ser ameaçada pela
vulgaridade das relações capitalistas numa fé de mercado.
Dilema que procura resolver
de uma maneira bastante inteligente, ao manter a salvo a tradição que tem lhe
garantido poder e influência há dois mil anos, mas ao mesmo tempo estimular sua
versão de mercado, encarnada pelos carismáticos.
Como uma espécie de
vanguarda, que contém o avanço das tropas “inimigas” lá na frente sem
comprometer a integridade do exército que se mantém mais atrás, padres pop star
como Marcelo Rossi e movimentos como a Canção Nova tem sido estratégicos para
reduzir a sangria de fiéis para as neopentecostais.
Não fosse esse tipo de
abordagem mais agressiva e possivelmente já existiria uma porção ainda maior de
evangélicos no país.
Tudo indica que a parábola
do taxista se tornará cada vez mais frequente nas ruas do Brasil – em
novas e ferozes versões. Afinal, não há nada mais ameaçador para o mercado do
que quem está fora do mercado por convicção. E quem está fora do mercado da fé?
Os ateus. É possível
convencer um católico, um espírita ou um umbandista a mudar de religião. Mas é
bem mais difícil – quando não impossível – converter um ateu.
Para quem não acredita na
existência de Deus, qualquer produto religioso, seja ele material, como um
travesseiro que cura doenças, ou subjetivo, como o conforto da vida eterna, não
tem qualquer apelo. Seria como vender gelo para um esquimó.
Tenho muitos amigos ateus.
E eles me contam que têm evitado se apresentar dessa maneira porque a reação é
cada vez mais hostil. Por enquanto, a reação é como a do taxista: “Deus me
livre!”.
Mas percebem que o cerco se
aperta e, a qualquer momento, temem que alguém possa empunhar um punhado de
dentes de alho diante deles ou iniciar um exorcismo ali mesmo, no sinal fechado
ou na padaria da esquina.
Acuados, têm preferido
declarar-se “agnósticos”. Com sorte, parte dos crentes pode ficar em dúvida e
pensar que é alguma igreja nova.
Já conhecia a “Bola de
Neve” (ou “Bola de Neve Church, para os íntimos”, como diz o seu site), mas
nunca tinha ouvido falar da “Novidade de Vida”. Busquei o site da igreja na
internet.
Na página de abertura, me
deparei com uma preleção intitulada: “O perigo da tolerância”. O texto fala
sobre as famílias, afirma que Deus não é tolerante e incita os fiéis a não
tolerar o que não venha de Deus. Tolerar “coisas erradas” é o mesmo que “criar
demônios de estimação”.
Entre as muitas frases
exemplares, uma se destaca: “Hoje em dia, o mal da sociedade tem sido a
Tolerância (em negrito e em maiúscula)”. Deus me livre! Um ateu talvez tenha
vontade de dizer. Mas nem esse conforto lhe resta.
Ainda que o crescimento
evangélico no Brasil venha sendo investigado tanto pela academia como pelo
jornalismo, é pouco para a profundidade das mudanças que tem trazido à vida
cotidiana do país.
As transformações no modo
de ser brasileiro talvez sejam maiores do que possa parecer à primeira vista.
Talvez estejam alterando o “homem cordial” – não no sentido estrito conferido
por Sérgio Buarque de Holanda, mas no sentido atribuído pelo senso comum.
Me arriscaria a dizer que a
liberdade de credo – e, portanto, também de não credo – determinada pela
Constituição está sendo solapada na prática do dia a dia. Não deixa de ser
curioso que, no século XXI, ser ateu volte a ter um conteúdo revolucionário.
Mas, depois que Sarah
Sheeva, uma das filhas de Pepeu Gomes e Baby do Brasil, passou a pastorear
mulheres virgens – ou com vontade de voltar a ser – em busca de príncipes
encantados, na “Igreja Celular Internacional”, nada mais me surpreende.
Se Deus existe, que nos
livre de sermos obrigados a acreditar nele.
Eliane Brum - Jornalista
0 Comments
Postar um comentário